Movido por uma enorme paixão pela leitura, o pedreiro sergipano Evando dos Santos enfrentou o preconceito e as dificuldades para transformar sua casa, no bairro carioca Vila da Penha, em uma biblioteca comunitária
“Um país se faz com homens e livros.” A frase de Monteiro Lobato virou uma máxima no cotidiano do sergipano Evando dos Santos. Trabalhando como pedreiro desde que chegou ao Rio de Janeiro, aos 15 anos, ele ajudou a construir centenas de casas, mas nenhuma delas mudou tanto sua vida quanto a obra que fez em sua própria casa: uma biblioteca. Apaixonado por livros, certo dia, ele deparou com um pilha de 50 livros em cima de um balcão de uma loja e não teve dúvidas: sondou o proprietário sobre qual seria o destino dos preciosos objetos. Ao saber que iriam ser doados, Evando levou todos para sua casa. Assim nasceu a Biblioteca Comunitária Tobias Barreto de Meneses, no bairro carioca Vila da Penha, onde a burocracia passa bem longe. Lá, o frequentador pode levar quantos livros quiser e sem prazo para a devolução. “Alguns não voltam. Mas, se pessoa ficou com o livro, é porque gostou ou precisava muito dele”, fala o Homem-Livro, como é conhecido por esse mundão afora.
Fundada em 1998, o empreendimento tem hoje um acervo de 40 mil obras, que tomam conta de quase todos os cômodos da residência. Há livros empilhados na garagem, nos corredores, nos quartos e até na cozinha. Ao contrário do que se pensa, todos conseguem encontrar o que procuram e ninguém reclama de, às vezes, passar horas atrás do que precisa. Ao contrário. A prova está no número cada vez maior de frequentadores. Evando estima que cerca de 20 pessoas circulem pela Tobias Barreto diariamente. A maioria são crianças e estudantes em busca de material para trabalhos escolares. Mas há também quem vá à procura de informação especializada. “Uma vez um vizinho, que estava desempregado, resolveu prestar concurso público. Como não tinha dinheiro para comprar os livros, veio à biblioteca e pegou o que precisava para estudar. E foi aprovado”, conta. O lugar abriga ainda raridades como um discurso de Getúlio Vargas sobre a Amazônia e a primeira gramática da Língua Portuguesa, de 1539, que ele exibiu cheio de orgulho durante o encontro com a reportagem da MONET.
Para realizar esse sonho, porém, o ex-pedreiro passou por diversas dificuldades. Muitos livros foram transportados por ele de ônibus, embaixo de sol e chuva. Além disso, teve de superar o preconceito. “As pessoas acham que sou desqualificado para lidar com livros, porque tenho um ‘intelecto não lapidado’, ou seja, não sei escrever corretamente.” Evando, mesmo concordando com o falatório - ele costuma afirmar que só ele entende o que escreve - , já produziu sua autobiografia (As Aventuras do Pedreiro Maluquinho por Livro) e reuniu pessoas da região onde mora para organizar o livro A História da Penha Escrita pelos Moradores. “Também estamos escrevendo o Dicionário das Pessoas Importantes Desconhecidas, no qual contamos a vida de pessoas da comunidade, como o coveiro, o pedreiro, o porteiro, a faxineira”, diz o Evando, que conta com o apoio de estudantes de escolas da região.
Nada mal para quem cresceu na roça, deixou a escola cedo e só aprendeu a ler aos 18 anos, quando morava no Rio. “Até então, meu único contato era com a literatura de cordel, que eu ouvia nas ruas.” O sergipano é uma rara exceção no universo literário no Brasil. Ele lê cerca de dez livros por mês, o que o coloca acima da média de leitura dos brasileiros – 1,8 livro por pessoa ao ano, segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL). Além disso, a maioria das pessoas que, como ele, teve pouco ou quase nenhum acesso à escola não consegue compreender metade do que lê. Evando supera as estatísticas e impressiona com a enorme bagagem cultural. Na entrevista, entre uma resposta e outra, ele declamou poesias de seu autor preferido — o que deu nome à casa-biblioteca — e falou de Sócrates, Confúcio, Dom Pedro, Graça Aranha, Machado de Assis, Voltaire e Aluízio Azevedo. “Livro para mim é vida. Ele tem o poder de afastar as pessoas da violência, das drogas, da ignorância e da pobreza de espírito”, fala.
Sua história já lhe rendeu bons frutos. Evando já apareceu em diversos programas de TV, foi premiado pela Academia Brasileira de Letras por indicação da escritora Nélida Piñon, ganhou curta-metragem e conquistou o apoio de gente importante, como Oscar Niemeyer. O arquiteto lhe deu de presente o projeto arquitetônico da nova biblioteca, com inauguração prevista para o início de 2007. “Lá, vai ser mais organizado. Teremos prateleiras e os livros serão catalogados, mas a burocracia será bem menor do que em qualquer outra biblioteca”, conta. Tudo o que ele recebe é revertido em dobro para a comunidade. Evando já incentivou a fundação de 29 novas bibliotecas comunitárias pelo país. “No ano passado, mandei 4.700 livros para a África, a fim de ajudar na reconstrução de Angola. No final do mês passado, enviei 8 mil livros para diversas regiões pobres do Brasil que não têm bibliotecas”, diz. Como não bastasse, todos os dias ele distribuiu livros nas ruas, a quem se interessar. “Quero encher este Brasil de fantasia livresca, porque o livro é a ferramenta-mestra de todas as ferramentas. Se as pessoas não lêem, isso incita a violência. Portanto, leiam! Leiam os grandes escritores brasileiros, como Tobias Barreto. Porque, como dizia Graça Aranha [discípulo de Tobias], ‘estudar Tobias é progredir’. Eu acrescento: não estudá-lo, é regredir.” Alguém duvida?
* texto publicado originalmente na revista monet (janeiro/2007)